Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio
– Gastão Cruz, Fogo, Assírio & Alvim, 2013
Depois do salto (clicar na imagem).
Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos…
Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isso —
Nesta localidade da cidade…
Há vinte anos!…
O que eu era então! Ora, era outro…
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada…
Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?)…
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)
Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos…
Não me lembro, não me posso lembrar.
O outro que aqui passava então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse…
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
Do que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!
Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo.
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer…
Daquela janela do segundo-andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.
Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada…
Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro.
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso…
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
Olhámos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.
Talvez isto realmente se desse…
Verdadeiramente se desse…
Sim, carnalmente se desse…
Sim, talvez…
—Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos, 1944
Um vago sentimento de tristeza aparentemente sem causa. Ocorre geralmente quando se sente a falta de alguém.
O dicionário português refere apenas a ausência de actividade intelectual.
Também é.