O romance não me parece tão bom como as favoráveis críticas da contracapa deixariam antever. Na escrita pelo menos. Na tradução, que foi o que li, senti por várias vezes o tom da básica redacção do liceu. Ou não me parece tão bom como a série — da qual gostei muito mais.

É uma história de amor, mas tão contemporânea, que algumas coisas não poderiam acontecer senão agora. Não consigo estabelecer qualquer ligação a elementos do romance clássico. Nestes existia sempre uma impossibilidade real, pela distância — numa época em que se demorava meio ano a atravessar o oceano, sem garantias de chegar; pela estratificação social que era observada de forma estrita; em última análise, por se arriscar de facto a vida ao amar a pessoa errada. Aqui nada disso existe. O que existe isso sim, são pessoas desnorteadas, com tantas auto-impossibilidades de verdadeira intimidade, como facilidades em se envolver com quem não interessa realmente nada, ou não lhes deveria interessar de forma nenhuma. Foi ele que começou, por uma imaginária questão de popularidade no secundário. Ela continuou, na faculdade, já obviamente com outro namorado e os papéis invertidos, Connell apagado e sem amigos, Marianne integrada e conhecida de todos — no seu próprio meio. A importância do estrato social é tão negligenciável que Marianne não retira daí qualquer vantagem para além de alguns proveitos materiais — pelo contrário, é meia-comunista, quanto mais não seja para chatear a família. Connell nem por ter conquistado a menina rica no liceu, quer ser visto com ela.

Pessoas Normais de Sally Rooney

Editado pela Relógio d’Água, com tradução de Ana Falcão Bastos.

Depois de mais um reencontro e estando aparentemente tudo bem, Connell tem de regressar a casa no Verão, designadamente por questões económicas, passada uma semana já Marianne anda com outro, um indivíduo vagamente detestante — desrespeitador, narcisista e arrogante, com a mania que é inteligente, aquilo a que chamo habitualmente um bandalho. Uma relação que dura pelo menos um ano, uma verdadeira eternidade para o meio e para as pessoas normais. Na série é absolutamente inexplicável a forma como Connell sai de cena, da possibilidade de passar o Verão com Marianne, de viverem juntos, numa época em que tudo lhes está a correr bem. No livro consegue-se vislumbrar algum do processo interior, mas de uma forma ou de outra, é algo que só poderia acontecer nesta normalidade.

Quando Marianne vai para a Suécia o e-mail de Connell transcrito integralmente é pateticamente fraco, vindo do melhor aluno de inglês e sendo os mails dele já anteriormente referidos por Marianne como muito bons. Soa a falso de uma forma até surpreendente, revelando que a autora está muito longe de se conseguir colocar na pele e na cabeça do mais inteligente personagem masculino do livro. Aliás, não deve ser exactamente uma coincidência que a Marianne da série — a mais inteligente personagem — apresente evidentes semelhanças com Sally Rooney, que fala do que sabe.

Na Suécia, o seu comportamento sexual desviante atinge o auge com Lukas, de cabelo tão loiro que parece branco. Na série preferiram escolher um sueco típico, negro, de cabelo… preto, tipo carapinha. Felizmente a literatura está mais imune a esta mania imposta pelas hordas de analfabetos que conquistaram as universidades e os microfones — talvez porque não leiam. Mesmo assim, a autora não deixa de acenar a uma série de “causas” muito queridas dessa franja… Marianne vem de uma família endinheirada, tradicional e no entanto completamente disfuncional, o que ajudou a torná-la um destroço; já Connell é filho de mãe solteira muito jovem, o seu “erro de juventude” e no entanto tem apoio familiar, e é minimamente equilibrado. Para Marianne a janela para a “felicidade real” é um casal lésbico seu conhecido, não algum casal heterossexual que apareça, designadamente os pares que ela própria forma a cada passo com espantosa facilidade. Inteligente que é, reconhece não ser boa pessoa por dentro, por muito que se esforce para ser correcta. Dá ideia que há uma permanente consumição e sabotagem de algo que poderia e deveria ser bom, pelo menos, a maior parte do tempo.

Sem querer revelar muito, acaba mal, embora os optimistas possam achar que é suficientemente ambíguo e que na verdade acaba bem. Mas não, de forma nenhuma, o final é a derradeira e eventualmente maior sabotagem de Marianne. É a Lucy, mais uma vez a retirar a bola ao Charlie Brown, no último momento e logo quando ele a ia chutar com toda a força. Poderia ser o chuto da sua vida, mas ela não deixou. Aquela relação só tem futuro como algo incompleto, sempre quebrado, sempre insatisfatório.

Não há nada de especial neste romance, Sally Rooney o que consegue é de uma forma simples, apresentar um retrato acabado da sociedade onde imperam os peregrinos, deambuladores (flâneurs), vagabundos e jogadores que Zygmunt Bauman viu e anteviu, designadamente nos livros “Amor Líquido” e “Vida Fragmentada”. Chega a ser perturbador o directo que se tornam esses títulos depois de ler “Pessoas Normais”, basta o prefácio de “Vida Fragmentada” para se identificar imediatamente Marianne e também Connell, embora de forma menos gritante. A única coisa genial neste livro, é o título. Sim, pessoas normais, quanto mais não seja porque são muitas, muito provavelmente já a maioria.